Vivemos no Tribunal do Like: Um espetáculo público patrocinado pelos juízes de sofá

Neste julgamento, o veredito é sempre Instantâneo, não existe defesa, a empatia é escassa e o julgamento nunca sai de moda

O ventilador de teto girava preguiçosamente, lutando contra o calor teimoso de Teresina. Sentado na varanda, com um copo de cajuína gelada na mão, observei Seu Nonato, o dono da mercearia da esquina, varrendo a calçada. Um ritual diário, tão constante quanto o pôr do sol no Parnaíba. De repente, um grito. Dona Zefa, a vizinha fofoqueira, irrompeu na rua, celular em punho, esbravejando contra as “imoralidades” de uma blogueira fitness que ousara postar uma foto comendo paçoca no domingo de Páscoa. “Cancelada!”, decretou, com a convicção de um juiz.

A cena me fez pensar nessa tal cultura do cancelamento. Uma guilhotina digital, sempre pronta para decepar reputações. Um tribunal virtual onde juízes anônimos, muitas vezes escondidos atrás de avatares, emitem sentenças irrevogáveis. Lembrou-me Machado de Assis, com sua ironia fina, disseccionando a hipocrisia humana. E Rubem Braga, encontrando poesia no ordinário, no grito da Dona Zefa, no girar do ventilador.

Dias depois, a própria Dona Zefa foi cancelada. Motivo? Um vídeo antigo, dela dançando forró em trajes mínimos numa festa junina, ressurgiu das profundezas da internet. A justiça virtual, implacável, a condenou sem direito a apelação. A ironia da situação me arrancou um sorriso. Um humor leve, à la Fernando Sabino, diante do absurdo cotidiano.

O episódio me deixou com uma sensação estranha. Uma mistura de riso e melancolia, como nos personagens de Paulo Mendes Campos. Afinal, quem somos nós para julgar? Quem nunca cometeu um deslize, uma gafe, uma “imoralidade”? Onde está o limite entre a responsabilização e o linchamento virtual?

A resposta, talvez, esteja na empatia, como nos ensinava Érico Veríssimo. Na capacidade de se colocar no lugar do outro, de entender suas motivações, suas fragilidades. De lembrar que, por trás de cada perfil, de cada postagem, existe um ser humano, tão falho e contraditório quanto nós mesmos. E que, antes de cancelar alguém, talvez devêssemos olhar para o nosso próprio reflexo no espelho, na tela do celular, na cajuína gelada.

O justiçamento na internet