Crime: O "Novo Cangaço" no Brasil
Historicamente, em nada (ou quase nada) essas práticas criminosas contemporâneas se assemelham ao cangaço sertanejo
As ações criminosas de roubos de cargas, de agências bancárias, os estouros de caixas eletrônicos e carros fortes ocorridas no país nos últimos anos estão sendo, equivocadamente, tipificadas, por parte das polícias, dos especialistas em segurança e dos meios de comunicação, como um “novo cangaço” ou sendo assemelhadas ao banditismo das facções criminosas nos morros do Rio de Janeiro.
Historicamente, em nada (ou quase nada) essas práticas criminosas contemporâneas se assemelham ao cangaço sertanejo (séculos XIX e XX). Sociologicamente, aqueles são crimes contra o patrimônio, planejados, financiados e executados por várias organizações criminosas, compostas de diversos profissionais direcionados ao mundo do crime organizado, com o fim único de pilhar o dinheiro e bens materiais sem qualquer tipo de propósito de redistribuição de renda. Ou seja, juridicamente, são criminosos contumazes que agem intencionalmente através de uma modalidade de banditismo armado e depredador.
Em 2018, o fim simbólico do cangaço brasileiro ou ciclo do cangaço completou 80 anos. Tratou-se de um movimento social caracterizado como um fenômeno sociocultural e político, que surgiu e se realizou como um embate de classes – dos fazendeiros e dos sertanejos –, onde se buscava o fim da opressão, exploração e dominação sobre o sertanejo numa sociedade majoritariamente agrária e onde o Estado era ausente. Não se quer com isso heroicizar o movimento social, mas desvinculá-lo da modalidade de banditismo que se faz através de organizações criminosas e violentas.
Nesse sentido, a expressão “novo cangaço” é inadequada, pois tenta reificar um estereótipo criminal ao modus operandi de Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião” (Serra Talhada, 4 de junho de 1898 – Poço Redondo, 28 de julho de 1938). O “Rei do Cangaço” foi o mais bem-sucedido líder cangaceiro da história brasileira, que atuou no Nordeste do Brasil – exceto, no Piauí e no Maranhão. Ele liderava uma força de nômades armados que percorreram o sertão para reverter as condições precárias e desumanizantes a que era submetida a população nordestina – e ainda hoje se encontra – , buscando fazer uma justiça social fora da lógica estatal.
Diferentemente dos sanguinários assaltantes de bancos, os cangaceiros eram pessoas de origem humilde e com rigidez moral, que enfrentavam os “donos do poder local” para livrar os sertanejos do julgo, da violência, da fome, da pobreza e da miséria. Não eram, portanto, membros de uma “organização criminosa” (art. 1º, da Lei 12.850/2013), que impõe as suas vontades à força, através de práticas de infrações penais com a finalidade de obter vantagem de qualquer natureza – p.ex., dinheiro e mercadorias em cargas – em paralelo à ineficiência estatal no controle sobre a criminalidade.
No Brasil, por um lado, o estudo do cangaço permite explicar o povo e suas lutas, através dos movimentos sociais e da formação social brasileira, compreendendo porque as classes dominantes evitam o aguçamento das contradições e das lutas, inibindo a participação popular com o uso de forças repressivas. Por outro lado, o banditismo das organizações criminosas revela que as forças de segurança estatais não estão, estrategicamente, integradas para lidar com a realidade. “[...] a sociedade brasileira mudou. Não dá mais para conter a violência e manter a ordem apenas na base da força, sem ir às raízes do problema e atinar para os fatores que alimentam essa triste realidade” (JORGE DA SILVA, 2018).
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