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Os riscos e os vários desafios da democracia no Brasil

A política econômica revela que o importante é o controle da inflação: as custas da recessão e do aumento do exército de reserva

26 de fevereiro de 2020, às 10:00 | Dalton Macambira

A grande crise dos anos de 1930 completou 90 anos. O sistema capitalista mundial entrou em colapso a partir de 1929, quando as cotações da Bolsa de Nova York desabaram, levando junto a economia norte-americana e a mundial, cuja recuperação plena somente ocorreu após o fim da Segunda Guerra Mundial (1945).

Lênin, o líder revolucionário e pensador marxista russo, demonstrou em seu “Imperialismo, fase superior do capitalismo” (1917) que a fusão do capital industrial com o capital bancário daria origem ao capital financeiro (especulativo - dinheiro que gera dinheiro e não produção e desenvolvimento). Essa característica nova do capital explica, em larga medida, as origens da antiga crise, referida, e da crise atual, a de 2008, que também teve como epicentro os EUA, mas que atingiu a economia mundial, inclusive o Brasil, nos anos seguintes. Basta lembrar como a mídia nacional deu importância à crise na Europa, com destaque para a Grécia, embora, no caso brasileiro, tratasse da questão de forma separada e desonesta, afirmando que aqui o problema teria sido causado pelo governo do PT.

A crise dos anos 1930 representou uma enorme fragilização do liberalismo econômico e político. A ideia de que a “mão invisível” resolveria os problemas da oferta e da demanda deu lugar a necessidade da intervenção do estado como indutor do desenvolvimento econômico e social, seja pela via democrática, como o “New Deal” norte-americano e do Keynesianismo francês e britânico, seja pela via revolucionária, como foi o caso da experiência soviética, mas também pela via totalitária, com a expansão do nazi-fascismo em boa parte da Europa ocidental. No Brasil, a experiência do estado interventor teve início na chamada era Vargas.

Como os governos dos EUA, da Inglaterra e da França achavam que os esforços de guerra do nazismo, inicialmente, se voltariam contra o socialismo soviético, permitiram o avanço da Alemanha sobre a Europa, cometendo um terrível engano, cujo preço foi a barbárie da guerra, com mais de 80 milhões de mortos, sendo cerca de 50 milhões de civis.

Com a derrota de Hitler e Mussolini, pensadores liberais tentaram, sem sucesso, fortalecer ideias do antigo liberalismo que dariam origem ao chamado neoliberalismo. A obra clássica, que reúne tais proposições, é o “Caminho da Servidão” (1944), de F. Hayek que, a despeito do fracasso inicial, recebeu o prêmio Nobel de economia décadas mais tarde (1974), quando o capitalismo enfrenta nova crise, a do petróleo. O objetivo principal do livro é atacar o socialismo, a democracia e a qualquer forma de intervenção do estado na economia. O desdobramento desse processo foi a experiência neoliberal no Chile, sob a ditadura de Pinochet (em que M. Friedman foi assessor econômico, o que explica como Paulo Guedes se tornou professor da principal universidade chilena) e a ascensão de M. Thatcher, na Inglaterra, e R. Reagan, nos EUA, no final dos anos de 1970 e início dos anos oitenta.

Assim, os ultraliberais, de ontem e de hoje, desprezaram as razões que conduziram à crise dos anos de 1930 e as conquistas democráticas do pós-guerra e apontam o neoliberalismo como saída para a crise de 2008, com monetarismo e desregulamentação do mercado financeiro e os trabalhadores pagando a conta da especulação financeira através de mais desemprego e menos direitos. Esse fato explica a onda conservadora no mundo atual, pois para os capitalistas garantirem seus lucros a democracia pode ser relegada a segundo plano, como já ocorreu em outros momentos da história. As recentes reações dos trabalhadores na Inglaterra (Brexit), na França (coletes amarelos) e a eleição de governos de centro-esquerda no México e na Argentina revelam que há luz no final do túnel.

No caso do Brasil, é preciso reconhecer que Bolsonaro venceu a eleição favorecido pela crise econômica, que fortaleceu o discurso demagógico diante de um povo sem esperança, e pela crise política, que levou ao golpe (2016) e a prisão ilegal do líder nas pesquisas, bem como explorando o sentimento conservador da sociedade brasileira (o racismo, o machismo, a homofobia ...) de ricos e pobres, de trabalhadores e da juventude, de homens e mulheres, de negros e brancos. É o governo do obscurantismo, de cunho fascista: autoritário na política, conservador nos costumes e ultraliberal na economia.

As elites e a grande mídia decidiram apoiar o governo em função da agenda econômica, um verdadeiro ultraje aos direitos sociais, e fazem de conta que a crise econômica está sendo superada, em um absoluto descolamento da realidade do país, onde o desemprego passou de 6,9% (2012) para 11% (2019) e os subempregados (sem carteira assinada) ultrapassam os 11 milhões. O PIB de 2019 foi menor que o de 2012. O que importa é o controle da inflação: as custas da recessão e do aumento do exército de reserva. Aplaudem até quando Paulo Guedes afirma que “os pobres são pobres porque não poupam”, um escárnio.

Diante do esquartejamento de empresar estatais estratégicas, como a Petrobras e a Eletrobras, entre outras, fala-se abertamente em privatizar tudo, desmontar o estado, patrimônio do povo brasileiro, propõe-se um Banco Central independente. Pergunta-se: independente de quem, cara pálida? Querem tirar o controle do estado para jogar definitivamente o BC no colo do mercado. Leia-se: Bradesco, Itaú e Santander. O que permitiu ao governo Lula enfrentar a crise de 2008, com relativo sucesso, foi o fortalecimento dos bancos públicos que investiram num movimento anticíclico para permitir que a economia continuasse girando através do financiamento de programas sociais como “Minha casa minha vida”, “Luz para todos”, “bolsa família”, entre tantos outros. Pois bem: depois de entregar a Embraer para a Boeing e de propor a liquidação dos Correios, os próximos alvos serão o Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e BNB.

As reformas neoliberais estão sendo implementadas apesar das confusões causadas pelo presidente e por seu clã, dos descompassos de seu governo e das bobagens de seus ministros, bem como a guerra interna no seu ex-partido (PSL). Há quem sustente que tudo isso é puro diversionismo, cortina de fumaça para confundir os incautos, desorientar os adversários e dar munição às milícias digitais que apoiam incondicionalmente Bolsonaro.

No entanto, é fato que a reação popular tem sido bastante tímida. A reforma da previdência passou sem grandes problemas. A crise econômica e os altos índices de desemprego explicariam essa apatia? Pouco provável, pois em outros países, com situação semelhante à nossa, as massas foram para as ruas e enfrentaram a truculência do estado.

As pesquisas revelam certo desgaste do governo, com cerca de 30% da população rejeitando o Governo. No entanto, outros 30% consideram o governo regular e cerca de 30% apoiam Bolsonaro. Essa realidade se reveste de enorme complexidade, difícil de explicar em tão poucas e mal traçadas linhas, mas se a eleição fosse hoje Bolsonaro estaria no segundo turno, com chances de vitória.

O crescimento das igrejas evangélicas, especialmente as neopentecostais, com tendência de o país ter maioria evangélica na próxima década, conforme indica o IBGE, explica em parte o sucesso do governo junto às camadas mais pobres da população, embora a faixa de maior renda e, pasmem, de maior escolaridade, não somente votaram como apoiam com mais fidelidade as inciativas governamentais. O antipetismo ainda é muito forte na sociedade e precisa ser considerado neste balanço conjuntural. Entretanto, se o barco de Bolsonaro naufragar a extrema direita terá o ex-juiz Sérgio Moro como alternativa, embora o ministro esteja bastante desgastado em função da desmoralização imposta pelas revelações da “vaza jato”, mesmo assim ainda teria a possibilidade de sua indicação ao Supremo.

Na balança também precisam ser considerados os descaminhos da oposição que, após a derrota eleitoral de 2018, não mais conseguiu se encontrar. Aliás, mesmo antes das eleições, a esquerda não construiu a unidade necessária para aparecer como alternativa para a população. Agora, com Lula fora da prisão, a expectativa de ver a maior liderança popular da história do Brasil articulando uma ampla frente em defesa da democracia e da soberania do país contra o fascismo neoliberal não se concretizou. O ex-presidente se tornou muito mais um líder partidário, frustrando os anseios daqueles que esperavam muito mais dele.

Por outro lado, o projeto de Ciro Gomes de ocupar o centro do espectro político, atacando Lula e o PT, além de o afastar da esquerda, não avançou por falta de um Partido que lhe seja fiel e que tenha estrutura nacional. A novidade é a desenvoltura do governador Flávio Dino, do Maranhão. Ao dialogar com todos, menos com Bolsonaro, o líder do PCdoB revela o caminho que dever ser trilhado para a restauração plena da democracia e da soberania nacional. O problema, dizem alguns, é que o seu partido é muito pequeno para o tamanho da empreitada, além do estigma do comunismo reforçado pelos bolsonaristas. A quem lhe dá ouvidos Flávio Dino tem afirmado que o atual presidente venceu uma eleição com um partido minúsculo e inexpressivo no cenário nacional, ao contrário do PCdoB que tem militância forte nos movimentos sociais e uma história quase centenária no Brasil.

Em relação às demais forças presentes no cenário político, percebe-se pouca preocupação com a manutenção das garantias democráticas e total apoio ao neoliberalismo no empresariado e nas Forças Armadas, fiadores do golpe de 2016. O que não ocorre com o Congresso Nacional e com o STF que, a despeito de apoiar a derrubada de Dilma e a agenda econômica do governo, têm demonstrado, em muitos momentos, apreço ao estado de direito e revelado a necessidade de fortalecimento da nossa democracia frente a ameaça obscurantista.

Algumas lembranças importantes: 1) a esquerda, como Lula/Dilma, somente venceu eleições quando obteve o apoio do centro político; 2) todos aqueles que lutaram e ajudaram a derrubar a ditadura em 1984/1985 foram derrotados na eleição de 2018. A próxima batalha será a eleição municipal deste ano, prévia da eleição nacional de 2022. Pergunta-se: cometer-se-á os mesmos erros ou a esquerda aprendeu com as lições da história?

Diante da possibilidade da continuidade do projeto conservador, de conteúdo fascista e neoliberal, com acenos claramente autoritários, como a volta do AI5, aumentam os riscos de ruptura do que resta da ordem democrática e chama-se a atenção para o que asseverou o jornalista Jânio de Freitas: “[...] O bolsonarismo sonha e não para. Dos democratas, apenas se sabe que dormem. Ou fingem dormir”. Nesse contexto, é inacreditável que a esquerda ainda bata cabeça para saber se a frente para derrotar o fascismo deve ser ampla, incluindo o centro e, se for o caso, até o centro direita, ou uma frente formada apenas pela própria esquerda.


Dalton Melo Macambira é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí.


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