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Universidade autônoma e cidadania

O grande débito da universidade é com os filhos da classe trabalhadora, cuja imensa maioria não tem acesso ao ensino superior

22 de novembro de 2018, às 13:00 | Dalton Macambira

Este artigo foi publicado originalmente em 1999, no jornal Folha de S.Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz22059910.htm),quando exercia a vice-presidência do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES – SN). Diante das notícias que antecedem a posse do novo governo, que afirmam que a universidade pública será um de seus principais alvos, particularmente a liberdade de cátedra e o princípio constitucional da autonomia universitária, me pareceu extremamente atual o seu conteúdo. Por esta razão, peço licença ao editor e aos meus leitores para publicá-lo novamente.

O tema que deve polarizar as atenções da academia neste ano é a autonomia universitária. Ela não pode, todavia, ser vista como panaceia. Desde o surgimento da universidade, na Idade Média, a autonomia constituiu pressuposto básico da liberdade para a produção plena de conhecimento, ciência e tecnologia. A universidade,portanto, é criação anterior ao Estado moderno. No Brasil, o autoritarismo estatal impediu por muito tempo o surgimento da universidade. Hoje (é necessário reconhecer), a universidade pública é instituição integrante do Estado, submetida às regras do Estado Democrático de Direito, mas não subordinada a nenhum dos seus Poderes. A natureza pública dos serviços da universidade exige controle e avaliação do Estado e da sociedade, mas isso não implica ingerência. Com base nesses pressupostos, sempre defendemos a autonomia.

A universidade brasileira surgiu por iniciativa do poder de Estado e se expandiu na ditadura, para atender a projetos estratégicos dos militares. Esse processo a tornou uma instituição muito mais estatal do que pública. Por isso, a universidade brasileira nunca foi autônoma. Mesmo após a promulgação da Constituição de 1988, a universidade pública continuou sendo extensão administrativa do poder estatal.

Agora, o governo pretende impor mudanças no ensino superior público. A proposta do Ministério da Educação visa regulamentar apenas a autonomia das universidades federais, eximindo-se do controle das instituições particulares de ensino superior. Para o MEC, acentralidade da autonomia passa pela questão do financiamento. Como a Constituição assegura o financiamento público, o governo pretende burlar a norma constitucional, negando o que a lei garante por meio de uma proposta de regulamentação.

O que está em curso é uma tentativa de comprometer o caráter público das universidades federais, cujos desdobramentos poderão atingir os sistemas estaduais de ensino superior. A proposição do "contrato de gestão" é uma afronta aos princípios consagrados na Constituição. Tais contratos foram instituídos para dar autonomia relativa a órgãos da administração direta e indireta do Estado, o que não é o caso da universidade, que já é autônoma.

Entretanto,o modo como está redigido o artigo 207 da Carta ("as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão não princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão") tem revelado sua insuficiência para a defesa da autonomia, o que permitiu ao governo normatizar autoritariamente a organização da universidade. Exemplos disso foram à lei sobre eleição de dirigentes das instituições federais e a que instituiu o provão. Um pressuposto básico para a autonomia é revogar toda a legislação infraconstitucional que trata da universidade. Da mesma forma, é inadmissível que a universidade pública (federal ou estadual) seja atingida pelo projeto de reforma administrativa aprovado no Congresso.

A pura e simples auto aplicabilidade do art. 207 significa considerar, no limite, que cada instituição seja autônoma em si mesma, o que,além de quebrar a unidade do sistema federal de ensino superior,compromete seu caráter público. O problema é muito complexo. A lei que assegurou a autonomia conseguiu ser suficientemente genérica para o "bem" e para o "mal", tanto para quem defende sua auto aplicabilidade quanto para quem advoga a necessidade de sua regulamentação.

O 18º Congresso da ANDES - SN reafirmou a defesa da autoaplicabilidade do art. 207, mas aprovou também a necessidade de abrir um amplo debate com a sociedade. É fundamental que a lei ordinária defina o quadro institucional e o ordenamento jurídico das universidades quanto aos atributos da autonomia.

Defendemos um sistema nacional de universidades autônomas, composto por instituições públicas (federais e estaduais) e privadas, com o objetivo de assegurar alguns pressupostos básicos: 1) Financiamento público, exclusivamente para as instituições públicas e majoritariamente estatal; 2) Definição do modelo jurídico da universidade autônoma; 3) Manutenção do sistema federal de ensino superior, com garantia de carreira única, piso e teto salarial; 4) Avaliação institucional interna e externa (temos de prestar contas à sociedade, que financia a universidade pública com seus impostos); 5) Gestão democrática: eleição para os dirigentes das instituições e dos órgãos colegiados, com regras definidas no âmbito de cada universidade, questão não abordada pelo texto do MEC; 6) Controle público e estatal das instituições particulares de ensino superior, já que a educação é bem público e concessão do Estado.

A ANDES - SN entende que a autonomia exige a constituição de um ente jurídico voltado para o exercício autônomo de uma função pública, não para o exercício descentralizado de uma função estatal, como é o caso das atuais autarquias universitárias. O exercício da autonomia precisa ser garantido em relação a quem mantém a instituição. A universidade pública tem de ser autônoma em relação ao poder executivo; a particular, em relação à sua mantenedora.

A autonomia pressupõe uma nova relação da universidade com o Estado e com a sociedade. Ganhar o apoio da sociedade para impedir a destruição do sistema público de ciência e tecnologia exigirá da comunidade universitária romper com certas posturas corporativas e estabelecer mecanismos que permitam avaliar a quantidade e a qualidade do trabalho acadêmico.

Queremos que as entidades ligadas à educação procurem elaborar uma proposta unitária de autonomia, que contemple o conjunto das entidades universitárias, para podermos, fortalecidos pela unidade, enfrentar o governo e o seu projeto em melhores condições.

A universidade precisa estar inserida em projetos de desenvolvimento nacional e regional que legitimem sua existência. O grande débito da universidade é com os filhos da classe trabalhadora, cuja imensa maioria não tem acesso ao ensino superior. Ampliar vagas na universidade pública possibilitaria, mesmo relativamente, maior mobilidade social e o uso do espaço público a serviço do alargamento dos horizontes da cidadania.

Universidade Federal do Piauí / Foto: GP1

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(*) Dalton Macambira é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí – UFPI.


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